terça-feira, 18 de outubro de 2011

Divulgada a "Porta fidei" (porta da fé) o nome da Carta Apostólica em que Bento XVI promulga o "Ano da Fé", a celebrar a partir de 11 de Outubro de 2012, nos 50 anos da abertura do Vaticano II (texto integral)



“A porta da fé, que introduz na vida de comunhão com Deus e permite a entrada na sua Igreja, está sempre aberta para nós.” Estas as primeiras palavras da Carta Apostólica em que Bento XVI proclama o Ano da Fé, a celebrar a partir de Outubro de 2012, indicando as motivações, finalidades e linhas orientadoras desta iniciativa que assinalará os cinquenta anos do início do Concílio Ecuménico Vaticano II. Esta Carta Apostólica sob forma de Motu Proprio tem como nome, das primeiras duas palavras do texto original latino, “Porta fidei”, “a porta da fé”, alusão à passagem do livro dos Atos dos Apóstolos onde se refere que Paulo e Barnabé, na sua ação evangelizadora anunciavam “o que Deus tinha feito com eles e como tinha aberto aos pagãos a porta da fé”.


Carta Apostólica
sob forma de Motu Proprio
Porta fidei
do Sumo Pontífice
Bento XVI
pela qual se proclama o Ano da Fé
1. A PORTA DA FÉ (cf. Act 14, 27), que introduz na vida de comunhão com Deus e permite a
entrada na sua Igreja, está sempre aberta para nós. É possível cruzar este limiar, quando a
Palavra de Deus é anunciada e o coração se deixa plasmar pela graça que transforma.
Atravessar aquela porta implica embrenhar-se num caminho que dura a vida inteira. Este
caminho tem início com o Baptismo (cf. Rm 6, 4), pelo qual podemos dirigir-nos a Deus com o
nome de Pai, e está concluído com a passagem através da morte para a vida eterna, fruto da
ressurreição do Senhor Jesus, que, com o dom do Espírito Santo, quis fazer participantes da
sua própria glória quantos crêem n’Ele (cf. Jo 17, 22). Professar a fé na Trindade – Pai, Filho e
Espírito Santo – equivale a crer num só Deus que é Amor (cf. 1 Jo 4, 8): o Pai, que na plenitude
dos tempos enviou seu Filho para a nossa salvação; Jesus Cristo, que redimiu o mundo no
mistério da sua morte e ressurreição; o Espírito Santo, que guia a Igreja através dos séculos
enquanto aguarda o regresso glorioso do Senhor.
2. Desde o princípio do meu ministério como Sucessor de Pedro, lembrei a necessidade de
redescobrir o caminho da fé para fazer brilhar, com evidência sempre maior, a alegria e o
renovado entusiasmo do encontro com Cristo. Durante a homilia da Santa Missa no início do
pontificado, disse: «A Igreja no seu conjunto, e os Pastores nela, como Cristo devem pôr-se a
caminho para conduzir os homens fora do deserto, para lugares da vida, da amizade com o
Filho de Deus, para Aquele que dá a vida, a vida em plenitude» . Sucede não poucas vezes que
os cristãos sintam maior preocupação com as consequências sociais, culturais e políticas da fé
do que com a própria fé, considerando esta como um pressuposto óbvio da sua vida diária.
Ora um tal pressuposto não só deixou de existir, mas frequentemente acaba até negado.
Enquanto, no passado, era possível reconhecer um tecido cultural unitário, amplamente
compartilhado no seu apelo aos conteúdos da fé e aos valores por ela inspirados, hoje parece
que já não é assim em grandes sectores da sociedade devido a uma profunda crise de fé que
atingiu muitas pessoas.
3. Não podemos aceitar que o sal se torne insípido e a luz fique escondida (cf. Mt 5, 13-16).
Também o homem contemporâneo pode sentir de novo a necessidade de ir como a
samaritana ao poço, para ouvir Jesus que convida a crer n’Ele e a beber na sua fonte, donde
jorra água viva (cf. Jo 4, 14). Devemos readquirir o gosto de nos alimentarmos da Palavra de
Deus, transmitida fielmente pela Igreja, e do Pão da vida, oferecidos como sustento de
quantos são seus discípulos (cf. Jo 6, 51). De facto, em nossos dias ressoa ainda, com a mesma
força, este ensinamento de Jesus: «Trabalhai, não pelo alimento que desaparece, mas pelo
alimento que perdura e dá a vida eterna» (Jo 6, 27). E a questão, então posta por aqueles que
O escutavam, é a mesma que colocamos nós também hoje: «Que havemos nós de fazer para
realizar as obras de Deus?» (Jo 6, 28). Conhecemos a resposta de Jesus: «A obra de Deus é
esta: crer n’Aquele que Ele enviou» (Jo 6, 29). Por isso, crer em Jesus Cristo é o caminho para
se poder chegar definitivamente à salvação.
4. À luz de tudo isto, decidi proclamar um Ano da Fé. Este terá início a 11 de Outubro de 2012,
no cinquentenário da abertura do Concílio Vaticano II, e terminará na Solenidade de Nosso
Senhor Jesus Cristo Rei do Universo, a 24 de Novembro de 2013. Na referida data de 11 de
Outubro de 2012, completar-se-ão também vinte anos da publicação do Catecismo da Igreja
Católica, texto promulgado pelo meu Predecessor, o Beato Papa João Paulo II, com o objectivo
de ilustrar a todos os fiéis a força e a beleza da fé. Esta obra, verdadeiro fruto do Concílio
Vaticano II, foi desejada pelo Sínodo Extraordinário dos Bispos de 1985 como instrumento ao
serviço da catequese e foi realizado com a colaboração de todo o episcopado da Igreja
Católica. E uma Assembleia Geral do Sínodo dos Bispos foi convocada por mim, precisamente
para o mês de Outubro de 2012, tendo por tema A nova evangelização para a transmissão da
fé cristã. Será uma ocasião propícia para introduzir o complexo eclesial inteiro num tempo de
particular reflexão e redescoberta da fé. Não é a primeira vez que a Igreja é chamada a
celebrar um Ano da Fé. O meu venerado Predecessor, o Servo de Deus Paulo VI, proclamou um
semelhante, em 1967, para comemorar o martírio dos apóstolos Pedro e Paulo no décimo
nono centenário do seu supremo testemunho. Idealizou-o como um momento solene, para
que houvesse, em toda a Igreja, «uma autêntica e sincera profissão da mesma fé»; quis ainda
que esta fosse confirmada de maneira «individual e colectiva, livre e consciente, interior e
exterior, humilde e franca». Pensava que a Igreja poderia assim retomar «exacta consciência
da sua fé para a reavivar, purificar, confirmar, confessar». As grandes convulsões, que se
verificaram naquele Ano, tornaram ainda mais evidente a necessidade duma tal celebração.
Esta terminou com a Profissão de Fé do Povo de Deus, para atestar como os conteúdos
essenciais, que há séculos constituem o património de todos os crentes, necessitam de ser
confirmados, compreendidos e aprofundados de maneira sempre nova para se dar
testemunho coerente deles em condições históricas diversas das do passado.
5. Sob alguns aspectos, o meu venerado Predecessor viu este Ano como uma «consequência e
exigência pós-conciliar» , bem ciente das graves dificuldades daquele tempo sobretudo no que
se referia à profissão da verdadeira fé e da sua recta interpretação. Pareceu-me que fazer
coincidir o início do Ano da Fé com o cinquentenário da abertura do Concílio Vaticano II
poderia ser uma ocasião propícia para compreender que os textos deixados em herança pelos
Padres Conciliares, segundo as palavras do Beato João Paulo II, «não perdem o seu valor nem a
sua beleza. É necessário fazê-los ler de forma tal que possam ser conhecidos e assimilados
como textos qualificados e normativos do Magistério, no âmbito da Tradição da Igreja. Sinto
hoje ainda mais intensamente o dever de indicar o Concílio como a grande graça de que
beneficiou a Igreja no século XX: nele se encontra uma bússola segura para nos orientar no
caminho do século que começa». Quero aqui repetir com veemência as palavras que disse a
propósito do Concílio poucos meses depois da minha eleição para Sucessor de Pedro: «Se o
lermos e recebermos guiados por uma justa hermenêutica, o Concílio pode ser e tornar-se
cada vez mais uma grande força para a renovação sempre necessária da Igreja».
6. A renovação da Igreja realiza-se também através do testemunho prestado pela vida dos
crentes: de facto, os cristãos são chamados a fazer brilhar, com a sua própria vida no mundo, a
Palavra de verdade que o Senhor Jesus nos deixou. O próprio Concílio, na Constituição
dogmática Lumen gentium, afirma: «Enquanto Cristo “santo, inocente, imaculado” (Heb 7, 26),
não conheceu o pecado (cf. 2 Cor 5, 21), mas veio apenas expiar os pecados do povo (cf. Heb 2,
17), a Igreja, contendo pecadores no seu próprio seio, simultaneamente santa e sempre
necessitada de purificação, exercita continuamente a penitência e a renovação. A Igreja
“prossegue a sua peregrinação no meio das perseguições do mundo e das consolações de
Deus”, anunciando a cruz e a morte do Senhor até que Ele venha (cf. 1 Cor 11, 26). Mas é
robustecida pela força do Senhor ressuscitado, de modo a vencer, pela paciência e pela
caridade, as suas aflições e dificuldades tanto internas como externas, e a revelar, velada mas
fielmente, o seu mistério, até que por fim se manifeste em plena luz».
Nesta perspectiva, o Ano da Fé é convite para uma autêntica e renovada conversão ao Senhor,
único Salvador do mundo. No mistério da sua morte e ressurreição, Deus revelou plenamente
o Amor que salva e chama os homens à conversão de vida por meio da remissão dos pecados
(cf. Act 5, 31). Para o apóstolo Paulo, este amor introduz o homem numa vida nova: «Pelo
Baptismo fomos sepultados com Ele na morte, para que, tal como Cristo foi ressuscitado de
entre os mortos pela glória do Pai, também nós caminhemos numa vida nova» (Rm 6, 4). Em
virtude da fé, esta vida nova plasma toda a existência humana segundo a novidade radical da
ressurreição. Na medida da sua livre disponibilidade, os pensamentos e os afectos, a
mentalidade e o comportamento do homem vão sendo pouco a pouco purificados e
transformados, ao longo de um itinerário jamais completamente terminado nesta vida. A «fé,
que actua pelo amor» (Gl 5, 6), torna-se um novo critério de entendimento e de acção, que
muda toda a vida do homem (cf. Rm 12, 2; Cl 3, 9-10; Ef 4, 20-29; 2 Cor 5, 17).
7. «Caritas Christi urget nos – o amor de Cristo nos impele» (2 Cor 5, 14): é o amor de Cristo
que enche os nossos corações e nos impele a evangelizar. Hoje, como outrora, Ele envia-nos
pelas estradas do mundo para proclamar o seu Evangelho a todos os povos da terra (cf. Mt 28,
19). Com o seu amor, Jesus Cristo atrai a Si os homens de cada geração: em todo o tempo, Ele
convoca a Igreja confiando-lhe o anúncio do Evangelho, com um mandato que é sempre novo.
Por isso, também hoje é necessário um empenho eclesial mais convicto a favor duma nova
evangelização, para descobrir de novo a alegria de crer e reencontrar o entusiasmo de
comunicar a fé. Na descoberta diária do seu amor, ganha força e vigor o compromisso
missionário dos crentes, que jamais pode faltar. Com efeito, a fé cresce quando é vivida como
experiência de um amor recebido e é comunicada como experiência de graça e de alegria. A fé
torna-nos fecundos, porque alarga o coração com a esperança e permite oferecer um
testemunho que é capaz de gerar: de facto, abre o coração e a mente dos ouvintes para
acolherem o convite do Senhor a aderir à sua Palavra a fim de se tornarem seus discípulos. Os
crentes – atesta Santo Agostinho – «fortificam-se acreditando». O Santo Bispo de Hipona tinha
boas razões para falar assim. Como sabemos, a sua vida foi uma busca contínua da beleza da fé
enquanto o seu coração não encontrou descanso em Deus. Os seus numerosos escritos, onde
se explica a importância de crer e a verdade da fé, permaneceram até aos nossos dias como
um património de riqueza incomparável e consentem ainda a tantas pessoas à procura de
Deus de encontrarem o justo percurso para chegar à «porta da fé».
Por conseguinte, só acreditando é que a fé cresce e se revigora; não há outra possibilidade de
adquirir certeza sobre a própria vida, senão abandonar-se progressivamente nas mãos de um
amor que se experimenta cada vez maior porque tem a sua origem em Deus.
8. Nesta feliz ocorrência, pretendo convidar os Irmãos Bispos de todo o mundo para que se
unam ao Sucessor de Pedro, no tempo de graça espiritual que o Senhor nos oferece, a fim de
comemorar o dom precioso da fé. Queremos celebrar este Ano de forma digna e fecunda.
Deverá intensificar-se a reflexão sobre a fé, para ajudar todos os crentes em Cristo a tornarem
mais consciente e revigorarem a sua adesão ao Evangelho, sobretudo num momento de
profunda mudança como este que a humanidade está a viver. Teremos oportunidade de
confessar a fé no Senhor Ressuscitado nas nossas catedrais e nas igrejas do mundo inteiro, nas
nossas casas e no meio das nossas famílias, para que cada um sinta fortemente a exigência de
conhecer melhor e de transmitir às gerações futuras a fé de sempre. Neste Ano, tanto as
comunidades religiosas como as comunidades paroquiais e todas as realidades eclesiais,
antigas e novas, encontrarão forma de fazer publicamente profissão do Credo.
9. Desejamos que este Ano suscite, em cada crente, o anseio de confessar a fé plenamente e
com renovada convicção, com confiança e esperança. Será uma ocasião propícia também para
intensificar a celebração da fé na liturgia, particularmente na Eucaristia, que é «a meta para a
qual se encaminha a acção da Igreja e a fonte de onde emana toda a sua força».
Simultaneamente esperamos que o testemunho de vida dos crentes cresça na sua
credibilidade. Descobrir novamente os conteúdos da fé professada, celebrada, vivida e rezada
e reflectir sobre o próprio acto com que se crê, é um compromisso que cada crente deve
assumir, sobretudo neste Ano.
Não foi sem razão que, nos primeiros séculos, os cristãos eram obrigados a aprender de
memória o Credo. É que este servia-lhes de oração diária, para não esquecerem o
compromisso assumido com o Baptismo. Recorda-o, com palavras densas de significado, Santo
Agostinho quando afirma numa homilia sobre a redditio symboli (a entrega do Credo): «O
símbolo do santo mistério, que recebestes todos juntos e que hoje proferistes um a um, reúne
as palavras sobre as quais está edificada com solidez a fé da Igreja, nossa Mãe, apoiada no
alicerce seguro que é Cristo Senhor. E vós recebeste-lo e proferiste-lo, mas deveis tê-lo sempre
presente na mente e no coração, deveis repeti-lo nos vossos leitos, pensar nele nas praças e
não o esquecer durante as refeições; e, mesmo quando o corpo dorme, o vosso coração
continue de vigília por ele».
10. Queria agora delinear um percurso que ajude a compreender de maneira mais profunda os
conteúdos da fé e, juntamente com eles, também o acto pelo qual decidimos, com plena
liberdade, entregar-nos totalmente a Deus. De facto, existe uma unidade profunda entre o
acto com que se crê e os conteúdos a que damos o nosso assentimento. O apóstolo Paulo
permite entrar dentro desta realidade quando escreve: «Acredita-se com o coração e, com a
boca, faz-se a profissão de fé» (Rm 10, 10). O coração indica que o primeiro acto, pelo qual se
chega à fé, é dom de Deus e acção da graça que age e transforma a pessoa até ao mais íntimo
dela mesma.
A este respeito é muito eloquente o exemplo de Lídia. Narra São Lucas que o apóstolo Paulo,
encontrando-se em Filipos, num sábado foi anunciar o Evangelho a algumas mulheres; entre
elas, estava Lídia. «O Senhor abriu-lhe o coração para aderir ao que Paulo dizia» (Act 16, 14). O
sentido contido na expressão é importante. São Lucas ensina que o conhecimento dos
conteúdos que se deve acreditar não é suficiente, se depois o coração – autêntico sacrário da
pessoa – não for aberto pela graça, que consente de ter olhos para ver em profundidade e
compreender que o que foi anunciado é a Palavra de Deus.
Por sua vez, o professar com a boca indica que a fé implica um testemunho e um compromisso
públicos. O cristão não pode jamais pensar que o crer seja um facto privado. A fé é decidir
estar com o Senhor, para viver com Ele. E este «estar com Ele» introduz na compreensão das
razões pelas quais se acredita. A fé, precisamente porque é um acto da liberdade, exige
também assumir a responsabilidade social daquilo que se acredita. No dia de Pentecostes, a
Igreja manifesta, com toda a clareza, esta dimensão pública do crer e do anunciar sem temor a
própria fé a toda a gente. É o dom do Espírito Santo que prepara para a missão e fortalece o
nosso testemunho, tornando-o franco e corajoso.
A própria profissão da fé é um acto simultaneamente pessoal e comunitário. De facto, o
primeiro sujeito da fé é a Igreja. É na fé da comunidade cristã que cada um recebe o Baptismo,
sinal eficaz da entrada no povo dos crentes para obter a salvação. Como atesta o Catecismo da
Igreja Católica, «“Eu creio”: é a fé da Igreja, professada pessoalmente por cada crente,
principalmente por ocasião do Baptismo. “Nós cremos”: é a fé da Igreja, confessada pelos
bispos reunidos em Concílio ou, de modo mais geral, pela assembleia litúrgica dos crentes. “Eu
creio”: é também a Igreja, nossa Mãe, que responde a Deus pela sua fé e nos ensina a dizer:
“Eu creio”, “Nós cremos”».
Como se pode notar, o conhecimento dos conteúdos de fé é essencial para se dar o próprio
assentimento, isto é, para aderir plenamente com a inteligência e a vontade a quanto é
proposto pela Igreja. O conhecimento da fé introduz na totalidade do mistério salvífico
revelado por Deus. Por isso, o assentimento prestado implica que, quando se acredita, se
aceita livremente todo o mistério da fé, porque o garante da sua verdade é o próprio Deus,
que Se revela e permite conhecer o seu mistério de amor.
Por outro lado, não podemos esquecer que, no nosso contexto cultural, há muitas pessoas
que, embora não reconhecendo em si mesmas o dom da fé, todavia vivem uma busca sincera
do sentido último e da verdade definitiva acerca da sua existência e do mundo. Esta busca é
um verdadeiro «preâmbulo» da fé, porque move as pessoas pela estrada que conduz ao
mistério de Deus. De facto, a própria razão do homem traz inscrita em si mesma a exigência
«daquilo que vale e permanece sempre». Esta exigência constitui um convite permanente,
inscrito indelevelmente no coração humano, para se pôr a caminho ao encontro d’Aquele que
não teríamos procurado se Ele não tivesse já vindo ao nosso encontro. É precisamente a este
encontro que nos convida e abre plenamente a fé.
11. Para chegar a um conhecimento sistemático da fé, todos podem encontrar um subsídio
precioso e indispensável no Catecismo da Igreja Católica. Este constitui um dos frutos mais
importantes do Concílio Vaticano II. Na Constituição Apostólica Fidei depositum – não sem
razão assinada na passagem do trigésimo aniversário da abertura do Concílio Vaticano II – o
Beato João Paulo II escrevia: «Este catecismo dará um contributo muito importante à obra de
renovação de toda a vida eclesial (...). Declaro-o norma segura para o ensino da fé e, por isso,
instrumento válido e legítimo ao serviço da comunhão eclesial».
É precisamente nesta linha que o Ano da Fé deverá exprimir um esforço generalizado em prol
da redescoberta e do estudo dos conteúdos fundamentais da fé, que têm no Catecismo da
Igreja Católica a sua síntese sistemática e orgânica. Nele, de facto, sobressai a riqueza de
doutrina que a Igreja acolheu, guardou e ofereceu durante os seus dois mil anos de história.
Desde a Sagrada Escritura aos Padres da Igreja, desde os Mestres de teologia aos Santos que
atravessaram os séculos, o Catecismo oferece uma memória permanente dos inúmeros modos
em que a Igreja meditou sobre a fé e progrediu na doutrina para dar certeza aos crentes na
sua vida de fé.
Na sua própria estrutura, o Catecismo da Igreja Católica apresenta o desenvolvimento da fé
até chegar aos grandes temas da vida diária. Repassando as páginas, descobre-se que o que ali
se apresenta não é uma teoria, mas o encontro com uma Pessoa que vive na Igreja. Na
verdade, a seguir à profissão de fé, vem a explicação da vida sacramental, na qual Cristo está
presente e operante, continuando a construir a sua Igreja. Sem a liturgia e os sacramentos, a
profissão de fé não seria eficaz, porque faltaria a graça que sustenta o testemunho dos
cristãos. Na mesma linha, a doutrina do Catecismo sobre a vida moral adquire todo o seu
significado, se for colocada em relação com a fé, a liturgia e a oração.
12. Assim, no Ano em questão, o Catecismo da Igreja Católica poderá ser um verdadeiro
instrumento de apoio da fé, sobretudo para quantos têm a peito a formação dos cristãos, tão
determinante no nosso contexto cultural. Com tal finalidade, convidei a Congregação para a
Doutrina da Fé a redigir, de comum acordo com os competentes Organismos da Santa Sé, uma
Nota, através da qual se ofereçam à Igreja e aos crentes algumas indicações para viver, nos
moldes mais eficazes e apropriados, este Ano da Fé ao serviço do crer e do evangelizar.
De facto, em nossos dias mais do que no passado, a fé vê-se sujeita a uma série de
interrogativos, que provêm duma diversa mentalidade que, particularmente hoje, reduz o
âmbito das certezas racionais ao das conquistas científicas e tecnológicas. Mas, a Igreja nunca
teve medo de mostrar que não é possível haver qualquer conflito entre fé e ciência autêntica,
porque ambas tendem, embora por caminhos diferentes, para a verdade.
13. Será decisivo repassar, durante este Ano, a história da nossa fé, que faz ver o mistério
insondável da santidade entrelaçada com o pecado. Enquanto a primeira põe em evidência a
grande contribuição que homens e mulheres prestaram para o crescimento e o progresso da
comunidade com o testemunho da sua vida, o segundo deve provocar em todos uma sincera e
contínua obra de conversão para experimentar a misericórdia do Pai, que vem ao encontro de
todos.
Ao longo deste tempo, manteremos o olhar fixo sobre Jesus Cristo, «autor e consumador da
fé» (Heb 12, 2): n’Ele encontra plena realização toda a ânsia e anélito do coração humano. A
alegria do amor, a resposta ao drama da tribulação e do sofrimento, a força do perdão face à
ofensa recebida e a vitória da vida sobre o vazio da morte, tudo isto encontra plena realização
no mistério da sua Encarnação, do seu fazer-Se homem, do partilhar connosco a fragilidade
humana para a transformar com a força da sua ressurreição. N’Ele, morto e ressuscitado para
a nossa salvação, encontram plena luz os exemplos de fé que marcaram estes dois mil anos da
nossa história de salvação.
Pela fé, Maria acolheu a palavra do Anjo e acreditou no anúncio de que seria Mãe de Deus na
obediência da sua dedicação (cf. Lc 1, 38). Ao visitar Isabel, elevou o seu cântico de louvor ao
Altíssimo pelas maravilhas que realizava em quantos a Ele se confiavam (cf. Lc 1, 46-55). Com
alegria e trepidação, deu à luz o seu Filho unigénito, mantendo intacta a sua virgindade (cf. Lc
2, 6-7). Confiando em José, seu Esposo, levou Jesus para o Egipto a fim de O salvar da
perseguição de Herodes (cf. Mt 2, 13-15). Com a mesma fé, seguiu o Senhor na sua pregação e
permaneceu a seu lado mesmo no Gólgota (cf. Jo 19, 25-27). Com fé, Maria saboreou os frutos
da ressurreição de Jesus e, conservando no coração a memória de tudo (cf. Lc 2, 19.51),
transmitiu-a aos Doze reunidos com Ela no Cenáculo para receberem o Espírito Santo (cf. Act
1, 14; 2, 1-4).
Pela fé, os Apóstolos deixaram tudo para seguir o Mestre (cf. Mc 10, 28). Acreditaram nas
palavras com que Ele anunciava o Reino de Deus presente e realizado na sua Pessoa (cf. Lc 11,
20). Viveram em comunhão de vida com Jesus, que os instruía com a sua doutrina, deixandolhes
uma nova regra de vida pela qual haveriam de ser reconhecidos como seus discípulos
depois da morte d’Ele (cf. Jo 13, 34-35). Pela fé, foram pelo mundo inteiro, obedecendo ao
mandato de levar o Evangelho a toda a criatura (cf. Mc 16, 15) e, sem temor algum,
anunciaram a todos a alegria da ressurreição, de que foram fiéis testemunhas.
Pela fé, os discípulos formaram a primeira comunidade reunida à volta do ensino dos
Apóstolos, na oração, na celebração da Eucaristia, pondo em comum aquilo que possuíam para
acudir às necessidades dos irmãos (cf. Act 2, 42-47).
Pela fé, os mártires deram a sua vida para testemunhar a verdade do Evangelho que os
transformara, tornando-os capazes de chegar até ao dom maior do amor com o perdão dos
seus próprios perseguidores.
Pela fé, homens e mulheres consagraram a sua vida a Cristo, deixando tudo para viver em
simplicidade evangélica a obediência, a pobreza e a castidade, sinais concretos de quem
aguarda o Senhor, que não tarda a vir. Pela fé, muitos cristãos se fizeram promotores de uma
acção em prol da justiça, para tornar palpável a palavra do Senhor, que veio anunciar a
libertação da opressão e um ano de graça para todos (cf. Lc 4, 18-19).
Pela fé, no decurso dos séculos, homens e mulheres de todas as idades, cujo nome está escrito
no Livro da vida (cf. Ap 7, 9; 13, 8), confessaram a beleza de seguir o Senhor Jesus nos lugares
onde eram chamados a dar testemunho do seu ser cristão: na família, na profissão, na vida
pública, no exercício dos carismas e ministérios a que foram chamados.
Pela fé, vivemos também nós, reconhecendo o Senhor Jesus vivo e presente na nossa vida e na
história.
14. O Ano da Fé será uma ocasião propícia também para intensificar o testemunho da
caridade. Recorda São Paulo: «Agora permanecem estas três coisas: a fé, a esperança e a
caridade; mas a maior de todas é a caridade» (1 Cor 13, 13). Com palavras ainda mais incisivas
– que não cessam de empenhar os cristãos –, afirmava o apóstolo Tiago: «De que aproveita,
irmãos, que alguém diga que tem fé, se não tiver obras de fé? Acaso essa fé poderá salvá-lo?
Se um irmão ou uma irmã estiverem nus e precisarem de alimento quotidiano, e um de vós
lhes disser: “Ide em paz, tratai de vos aquecer e de matar a fome”, mas não lhes dais o que é
necessário ao corpo, de que lhes aproveitará? Assim também a fé: se ela não tiver obras, está
completamente morta. Mais ainda! Poderá alguém alegar sensatamente: “Tu tens a fé, e eu
tenho as obras; mostra-me então a tua fé sem obras, que eu, pelas minhas obras, te mostrarei
a minha fé”» (Tg 2, 14-18).
A fé sem a caridade não dá fruto, e a caridade sem a fé seria um sentimento constantemente à
mercê da dúvida. Fé e caridade reclamam-se mutuamente, de tal modo que uma consente à
outra de realizar o seu caminho. De facto, não poucos cristãos dedicam amorosamente a sua
vida a quem vive sozinho, marginalizado ou excluído, considerando-o como o primeiro a quem
atender e o mais importante a socorrer, porque é precisamente nele que se espelha o próprio
rosto de Cristo. Em virtude da fé, podemos reconhecer naqueles que pedem o nosso amor o
rosto do Senhor ressuscitado. «Sempre que fizestes isto a um dos meus irmãos mais
pequeninos, a Mim mesmo o fizestes» (Mt 25, 40): estas palavras de Jesus são uma
advertência que não se deve esquecer e um convite perene a devolvermos aquele amor com
que Ele cuida de nós. É a fé que permite reconhecer Cristo, e é o seu próprio amor que impele
a socorrê-Lo sempre que Se faz próximo nosso no caminho da vida. Sustentados pela fé,
olhamos com esperança o nosso serviço no mundo, aguardando «novos céus e uma nova
terra, onde habite a justiça» (2 Ped 3, 13; cf. Ap 21, 1).
15. Já no termo da sua vida, o apóstolo Paulo pede ao discípulo Timóteo que «procure a fé»
(cf. 2 Tm 2, 22) com a mesma constância de quando era novo (cf. 2 Tm 3, 15). Sintamos este
convite dirigido a cada um de nós, para que ninguém se torne indolente na fé. Esta é
companheira de vida, que permite perceber, com um olhar sempre novo, as maravilhas que
Deus realiza por nós. Solícita a identificar os sinais dos tempos no hoje da história, a fé obriga
cada um de nós a tornar-se sinal vivo da presença do Ressuscitado no mundo. Aquilo de que o
mundo tem hoje particular necessidade é o testemunho credível de quantos, iluminados na
mente e no coração pela Palavra do Senhor, são capazes de abrir o coração e a mente de
muitos outros ao desejo de Deus e da vida verdadeira, aquela que não tem fim.
Que «a Palavra do Senhor avance e seja glorificada» (2 Ts 3, 1)! Possa este Ano da Fé tornar
cada vez mais firme a relação com Cristo Senhor, dado que só n’Ele temos a certeza para olhar
o futuro e a garantia dum amor autêntico e duradouro. As seguintes palavras do apóstolo
Pedro lançam um último jorro de luz sobre a fé: «É por isso que exultais de alegria, se bem
que, por algum tempo, tenhais de andar aflitos por diversas provações; deste modo, a
qualidade genuína da vossa fé – muito mais preciosa do que o ouro perecível, por certo
também provado pelo fogo – será achada digna de louvor, de glória e de honra, na altura da
manifestação de Jesus Cristo. Sem O terdes visto, vós O amais; sem O ver ainda, credes n’Ele e
vos alegrais com uma alegria indescritível e irradiante, alcançando assim a meta da vossa fé: a
salvação das almas» (1 Ped 1, 6-9). A vida dos cristãos conhece a experiência da alegria e a do
sofrimento. Quantos Santos viveram na solidão! Quantos crentes, mesmo em nossos dias,
provados pelo silêncio de Deus, cuja voz consoladora queriam ouvir! As provas da vida, ao
mesmo tempo que permitem compreender o mistério da Cruz e participar nos sofrimentos de
Cristo (cf. Cl 1, 24) , são prelúdio da alegria e da esperança a que a fé conduz: «Quando sou
fraco, então é que sou forte» (2 Cor 12, 10). Com firme certeza, acreditamos que o Senhor
Jesus derrotou o mal e a morte. Com esta confiança segura, confiamo-nos a Ele: Ele, presente
no meio de nós, vence o poder do maligno (cf. Lc 11, 20); e a Igreja, comunidade visível da sua
misericórdia, permanece n’Ele como sinal da reconciliação definitiva com o Pai.
À Mãe de Deus, proclamada «feliz porque acreditou» (cf. Lc 1, 45), confiamos este tempo de
graça.
Dado em Roma, junto de São Pedro, no dia 11 de Outubro do ano 2011, sétimo de
Pontificado.
[BENEDICTUS PP. XVI]

Radio Vaticano

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