domingo, 24 de outubro de 2010

Madres do Deserto - A Herança de Raquel





A Herança de Raquel

Meu nome em hebraico significa “ovelha”, mas minha vida nunca foi reflexo da mansidão e da inocência que o meu nome parece evocar. Sempre fui rebelde e insatisfeita, e nem sequer o amor incondicional que me demonstrou Jacó foi o suficiente para aplacar e sossegar meus desejos.
A esterilidade me confinava na morte e na desolação e me marcava com o sinal do castigo de Deus (Gn 20,18), impossibilitando-me de ser digna companheira de meu marido. Por isso um dia exigi dele, com angústia: “Faze-me ter filhos também ou eu morro”, mas só obtive uma resposta irritada, remetendo-me a quem é a origem de toda fecundidade: “Acaso estou eu no lugar de Deus que te recusou a maternidade?” (Gn 30, 1-2).
Quando por fim fiquei grávida e dei à luz um filho, que me libertou de minha vergonha, chamei-o José, que significa “que o Senhor me dê outro”. Por isso o pequeno José cresceu com a consciência de ser um portador de esperança e ao mesmo tempo, com a sensação de estar incompleto, de “não ser suficiente”. Nem tudo era negativo em minha insatisfação: expressava também minha recusa existencial a conformar-se, a instalar-me e a deixar de desejar algo mais. Meu maior empenho foi o de gerar vida, custasse o que custasse, e isso me manteve sempre expectante e a caminho, atenta e à espreita. É esta a insatisfação que lhes deixo como herança, o desejo contínuo, insaciável e incontido que impede de parar de buscar, de perguntar, de querer ir sempre mais adiante, sem contentar-se nunca com o já sabido, aprendido ou conseguido.
Faço-lhes agora entrega, portanto, de um humor que as ajude a restabelecer as autênticas dimensões do humano e de seus problemas e a conceder a cada coisa a importância que merece. Sirvam-se do humor para levar sua razão um pouco além do aceitável e para perceber quão débil e pouco nítida é a linha convencional que separa o discurso sério do que não o é.
O humor é um irmão mais novo da fé e ambos sempre oferecem um modo alternativo de reagir ante as incongruências da existência. Deixem que a fé e o humor as levem pela mão até à terra do inconcebível e do incrível, que as faça penetrar num mundo regido por leis diferentes, livres de todos os fardos que as angustiam, com a ousadia de assegurar alegremente a vida.
Se confiarem em seus próprios recursos limitados, o sofrimento as assustará e procurarão evitar as situações dolorosas. Mas se consentirem em participar da compaixão do Messias poderão descer com ele até aos infernos do mundo e unir-se ao seu múnus de consolar.
Sejam mulheres compassivas e apaixonadas, porque um coração sem paixão renuncia a sofrer e a viver em plenitude. Como disse recentemente uma de vocês, tomem a decisão consciente de prestar atenção à realidade, de deter-se ante as pessoas e as situações para atendê-las com esmero, mas também para se deixarem captar e afetar por elas, mais ainda, para se deixarem transformar. E lembrem-se de que o olhar compassivo é uma “compaixão simétrica”, porque a relação de amor e de interesse efetivo acontecerá entre iguais e isso gera um movimento de ida e volta, de dar e receber.
Pois foi só no final de minha vida que soube até onde teria de chegar nessa comunhão com o Compassivo e ter parte com Ele. Pois foi só no final de minha vida que soube até onde teria de chegar nessa comunhão: enquanto estávamos a caminho, senti as dores de parto do meu segundo filho e intuí obscuramente que minha própria vida estava ameaçada, e que ia tornar-se realidade aquela súplica intensa que havia feito a Jacó: “Faze-me ter filhos também ou eu morro!” E ao pressentir que ia morrer por causa daquela fecundidade que tinha desejado tanto, percebi que estava entrando na nuvem de um profundo mistério: era precisamente através de minha morte que ia abrir-se o caminho para a vida do doutro, e minha desapropriação é que tornaria possível seu nascimento.
Terminamos aqui a herança de quatro mulheres que nos precederam: coloco em suas mãos o riso, a esperança, a dança, a sintonia com Deus, a decisão, a arte de tecer tramas, a sabedoria de administrar fracassos e êxitos, a insatisfação, o humor e a compaixão.
É uma bela Torá feminina,promulgada não da altura do Sinai, mas das entranhas da terra da gruta de Macpela e do túmulo de Raquel em Éfrata.

Madre Rosa Maria de Lima, F.M.D.J

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