quarta-feira, 11 de junho de 2014

VESTÍGIOS DA ETERNIDADE


            Caro leitor, quando me acontece de ler algum clássico da literatura universal, uma obra daquelas que nos eleva, que nos torna melhores, sinto imediatamente gratidão pelo autor. Por vezes, agradeço em espírito a Beethoven não só por uma obra completa, sinfonia, concerto ou sonata, mas por uma determinada nota ou por algum trecho de determinada composição. Digo a ele: “Obrigado por exatamente essa nota!” “Obrigado porque aqui não há mero enfeite supérfluo ou dissimulada afetação, mas a sua alma nua, íntegra, em sonora comunicação.”

 

            Tenho pelos grandes artistas, não importa se pintores, escultores, músicos, escritores, profunda gratidão e igual veneração. Por quê?, indaga-me o leitor. Porque, respondo, a arte é um sacerdócio, é um prolongamento do poder criador de Deus, é o sétimo dia da criação, em que Deus descansou para o homem completar. A verdadeira arte, a arte genuína, que seja digna desse nome, é um vestígio da eternidade, um relâmpago fora do tempo, uma antevisão do paraíso, uma pregação de Deus.

 

            Aquela obra, não importa de que tipo, que revela o gênio e em que o gênio se revela leva-nos a um estado de contemplação algo semelhante ao êxtase dos místicos: por um instante, esquecemo-nos do mundo e talvez até de nós mesmos, para contemplar o belo. Ora, o êxtase dos ascetas, antegozo do céu, também é um esquecer-se do mundo, elevar-se do mundo, para mergulhar na beleza insondável e imutável, que, afinal, outra coisa não é do que o próprio Deus.

 

            Ensinam-nos os teólogos cristãos que Deus não é bom, ele é a bondade; Deus não é justo, ele é a justiça; Deus não é belo; ele é a beleza. Só Deus existe por si mesmo, sem depender de qualquer outro ser. Deus é a causa de todos os outros seres, enquanto o ser de Deus não tem causa, é incausado. Deus é a causa incausada. Ele não é causado, não é efeito de uma causa anterior a ele; simplesmente é. Todos os seres existem tão somente por participação no ser de Deus. Se não participassem do ser de Deus de alguma forma, não seriam, não existiriam.

 

            Ora, o mesmo acontece com a beleza. Tudo o que é belo retira a sua parcela de beleza do ser de Deus. Fora de Deus não há beleza (com certeza, muitos modismos e cortes de cabelo não são de Deus!). Se algo é genuinamente belo, estejamos certos, é porque ele participa do ser de Deus em alguma medida. É por isso que, quanto mais perfeita e acabada a obra, mais ela tende à atemporalidade, sua maravilha atravessa o oceano dos tempos, cruza os mares das modas, surpreendendo homens de várias idades ou épocas. Quanto menor a obra, mais temporal, mais marcada ela é pelas cicatrizes do tempo. Pode-se dizer também que quanto mais perfeito o produto do gênio humano, mais universal, mais desprendido ele está de circunstâncias territoriais. Ele é universal no tempo e no espaço. Nesse sentido, a verdadeira Igreja somente poderia ser católica, universal.

 

            Assim, podemos dizer sem medo de errar que o mal e a feiura não são entes, não existem, pois não participam do ser de Deus, em que não há qualquer defeito ou vício. O mal e o feio são carências de ser, privações de ser. O mal, o feio e o injusto existem apenas como carências, como deficiências, como perdas de ser; não possuem existência ontológica. Dessa forma explica-se um pouco a transmissão do pecado original: os primeiros pais pecaram. O pecado acarretou uma perda de ser em sua natureza original, pois só o que é puro e incorrupto, íntegro, inteiro, pode corromper-se ou tornar-se viciado. Foi essa natureza quebrada, viciada, ferida, que nossos primeiros pais nos transmitiram.

 

            Gustavo Corção construiu uma belíssima imagem em seu “O desconcerto do mundo”. Diz ele que as obras artísticas genuínas serão apresentadas a Deus pelos homens, no ofertório do fim do mundo. Tudo o que o espírito humano produziu de belo, será ofertado à fonte e à origem de toda a beleza, no fim dos tempos:
  
 

“Uma locomotiva supera, substitui, torna obsoleta a diligência que transportou nossos avós; mas não há obra de arte que torne obsoleta outra obra de arte. Os quadros se sucedem no tempo de surgimento, na hora de entrar no grande salão universal que um dia, no último dia, estará completo; e então mostrará, a Deus e aos anjos, a coleção de gestos com que uma estranha raça glosou o mote fundamental da humana essência, assim como quem diz: – Quereis saber o que é um homem? Aí está a variedade que nasce na riqueza de uma alma racional... Sucedem-se as obras, chega uma após outra, condicionada, marcada pelo século, mas não subordinada, não determinada pela história. O século passa com seus outros sinais fugazes, a obra fica.”

 
            É por tudo isso que eu alimento a serena convicção de que a arte contém vestígios do paraíso, uma espécie de coautoria divina ou pó celeste, despertando nossos sentidos para o que há de vir, preparando-nos para o súbito encontro com o máximo grau de beleza, de cuja intensidade jamais poderíamos suspeitar. Deve ser um esplendor solar, luminoso, a ponto de quase nos cegar.

 

            Em vista dessa gratidão que eu trago em meu peito por todo artista verdadeiro, isto é, por aqueles que não estão presos à camisa de força da moda, às amarras de tempo e de lugar, em virtude, repito, da minha veneração por essa peculiar espécie de filhos de São Domingos, que prega pelo seu gênio, ocorre-me muitas vezes de recomendá-los a Deus e de deplorar os maus artistas que envenenam nossas almas com feiuras escatológicas.

 

            Nós devemos ser muito agradecidos a Deus pela arte. Nesse vale de lágrimas é-nos concedida alguma distensão, algum remédio, algum alívio. Ela traz-nos uma espécie de assombro, de susto, de gozosa e instantânea morte.

 

 

 
Paul Medeiros Krause

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