quinta-feira, 15 de maio de 2014

CARTA AO DESESPERO


 

Se há uma espécie de pessoas de quem eu tenho compaixão é a dos que estão em desespero. Não há nada mais aflitivo do que sentir-se encurralado, não enxergar uma saída, não ver sentido na vida, encontrar-se em um labirinto. Parece que um turbilhão de pensamentos passa pela cabeça do desesperado, que ele não consegue impor domínio e pôr ordem em seus raciocínios e sentimentos. Há uma tal velocidade na sucessão de ideias, que é quase impossível agarrar-se a alguma delas. Em outras palavras: o desespero é a antessala do inferno, uma espécie de anarquia ou revolta dos sentimentos, o caos em forma de fenômeno psíquico. No portal do inferno de Dante há a advertência: “deixai toda a esperança, ó vós que entrais!”.

 

Talvez alguém se surpreenda ao ler este pequeno texto justamente agora que está em pânico. Não há razão para surpresa, porém. Escrevi para você mesmo, e a Providência incumbiu-se de romper a distância que há entre mim e você. Em primeiro lugar, é preciso convencer-se de que há uma saída, procurá-la, mesmo que não seja possível vê-la imediatamente. É preciso deixar entrar um sopro de luz em sua alma, como o luar banhando os ombros de Cristo no Monte das Oliveiras. É necessário abrir as janelas do espírito para uma brisa nova, um novo frescor, para uma claridade tranquila.

 

Agrada-me tanto a cena da troca de olhares entre Cristo e São Pedro, após a prisão Daquele. Tenho para mim que aquele olhar pacífico foi decisivo e salvou Pedro. Mas, se Pedro não estivesse ali, não estivesse olhando o Senhor nos olhos, não experimentaria aquela claridade humilde entrando em sua alma.

 

Em “Crime e castigo”, há uma troca de olhares em tudo semelhante àquela, que se dá entre Sônia e Raskólnikov, após este fazer uma reverência aos homens e pedir perdão à terra por ter cometido duplo assassinato. Menciona-se até mesmo que Sônia acompanhava discretamente Raskólnikov em seu calvário.

 

"Eis que se lembrou das palavras de Sônia: 'Vai a um cruzamento, faz uma reverência ao povo, beija a terra, porque pecaste também perante ela, e diz a todo mundo em voz alta: 'Eu sou um assassino!'. Tremeu todo ao se lembrar disso. E já estava tão oprimido pela desesperadora melancolia e pela inquietação de todo esse tempo, mas especialmente das últimas horas, que acabou se precipitando para a possibilidade dessa sensação inteira, nova, completa. Ela chegou de súbito como uma espécie de acesso: começou a lhe arder na alma como uma fagulha e de repente se apossou de tudo como fogo. Tudo nele amoleceu, e as lágrimas jorraram. Do jeito que estava caiu no chão...

 

Ajoelhou-se no meio da praça, inclinou-se até o chão e beijou essa terra suja, com êxtase e felicidade. Levantou-se e tornou a inclinar-se."

 

Cristo também passou pelo desespero, atravessou-o. Não há miséria humana que Ele não tenha tocado, apalpado com as próprias mãos, experimentado.

 

Olhemos para Ele no Monte das Oliveiras. Um trecho, menor do que um versículo, chama-me muito a atenção no Evangelho de São Lucas: “Erguendo-se após a oração”. (Notemos que Raskólnikov também se ergue). Deus estava prostrado – que mistério estupendo! –, deitado no solo, com o rosto por terra. Ele havia se retirado para um lugar deserto, tranquilo, no qual estava acostumado a rezar. Pediu ajuda, a solidariedade, dos que Lhe eram mais íntimos: Pedro, Tiago e João. Não Se confiou a todos os discípulos nem a todos os apóstolos – pois eles podiam escandalizar-se e talvez não O pudessem ajudar. Confiou-Se apenas àqueles que Lhe eram mais próximos. É bem verdade que os seus não O ajudaram muito – em alguma coisa sim, pois permaneceram ali –, mas em contrapartida os anjos do Céu vieram confortá-Lo.

 

O Evangelho parece oferecer-nos um bom roteiro: no momento do desespero, procurar um lugar ou ambiente tranquilo. Talvez esse “lugar” possa ser entendido como um “momento” de tranquilidade, de solidão, de estar a sós consigo, com Deus e com os mais íntimos. Recorrer com intensidade à oração e recomendar-se às preces e aos cuidados dos mais íntimos, mesmo com insistência. Cristo pediu a ajuda daqueles mais próximos por três vezes. Se por um desígnio da Providência, os amigos não nos ajudarem, Deus mandará os seus anjos confortarem-nos. Não há oração que fique sem resposta. Deus não fica em silêncio. Ele não tem prazer com o nosso sofrimento. Ele entende e se compadece do nosso sofrimento.

 

Falando concretamente, esse olhar o Senhor nos olhos, esse recorrer à oração, esse deixar o luar banhar-nos as costas na cena da agonia, pode significar ligar o rádio ou a TV em algum programa religioso, por exemplo, na Canção Nova. Esses bons programas podem ser os verdadeiros anjos que vêm do Céu para consolar-nos. Quem sabe pode significar ouvir um CD de oração ou assistir a um DVD com alguma boa pregação? Quem sabe visitar Deus no sacrário de alguma Igreja tranquila e rasgar-lhe o coração como rasgou-se em dois o véu do templo? O doce olhar de Cristo espera-nos em algum lugar, para nos dar a paz. Deixemo-nos olhar.

 

Quanto ao mais, continuemos a procurar com paz e decisão a saída, a entender que solicitação a vida nos faz, podendo lançar mão dos ensinamentos do grande Viktor Frankl: a pergunta que se deve fazer não é o que a vida ainda tem a oferecer-me, mas o que eu ainda tenho a oferecer à vida, que será que ela me pede diante dessa situação concreta? Por que será que eu ainda estou no mundo? A respeito de que esse desespero me interpela?

 

 

 

Paul Medeiros Krause

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