sexta-feira, 9 de agosto de 2013

OS ANOS DE APRENDIZADO




Um dos melhores livros que li ultimamente, e em toda a minha vida, é “Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister”, de Goethe. O próprio título do livro, de grande beleza, já convida à introspecção, suscita recordações, produzindo uma espécie de viagem do espírito. Quantas impressões não nos grava na alma, não nos evoca à mente, a ideia de“anos de aprendizado”? Não digo simplesmente “aprendizado”, mas a poética recordação dos “anos de aprendizado”. Trata-se de algo como o “voltar para casa”, tema recorrente na música e na literatura. Se a casa, a origem do indivíduo são sagrados, também o são seus anos de aprendizado.

A narrativa do progresso espiritual de Wilhelm revela a preocupação constante de Goethe com a formação plena do indivíduo, com o desenvolvimento máximo das suas múltiplas capacidades e potencialidades. Se o jovem Wilhelm ansiava formar-se plenamente, o Dr. Fausto do “Fausto: uma tragédia”, principal obra do escritor alemão, também o aspirava com todas as suas forças. Fausto, em sua obsessiva busca pelo saber completo, total, percebeu frustrado, esmagado, que algo lhe faltava.

“Os anos de aprendizado” inauguram e representam em grau máximo esta importante contribuição originalmente alemã para a literatura universal: o “Bildungsroman”, o romance de formação.

De notar-se o caráter marcadamente simbólico da narrativa das peripécias do jovem Wilhelm e da sua incursão pela vida teatral. Destaca-se o seu contato com a secreta Sociedade da Torre, cujos integrantes se incumbem da instrução de Wilhelm, sem que este o perceba, por meio de encontros aparentemente casuais. O aprendiz possuía formadores, instrutores, que se dedicavam a promover o seu crescimento e amadurecimento intelectual e moral, e a introduzi-lo na Sociedade da Torre, sem que aquele se desse conta disso. Aparentemente, o aprendiz estava sozinho; era governado pelo acaso.

A certa altura do romance, os formadores de Wilhelm revelam-se a ele, e ele então é declarado apto a integrar a sua sociedade. Recebe pois a carta de aprendizado. O livro, talvez no seu ápice, traz a sentença: “Glória a ti, jovem! Teus anos de aprendizado acabaram. A natureza te absolveu.”

Até o recebimento da carta de aprendizado, Wilhelm, idealista e inexperiente, de coração bom e impulsivo, comete muitos erros, muitos deles por ingenuidade e afoiteza. Mas o passado não é para ele algo descartável ou desprezível. Fica nítido que os erros constituíram parte importante, se não a principal, do seu processo de amadurecimento.

Quando chegam ao fim os anos de aprendizado, Wilhelm dá-se conta de que a sua incursão no teatro não era mais do que uma etapa. A carreira teatral, ao contrário do que sempre pensara, não constituía a sua autêntica vocação. Mas é só a voz da maturidade que lhe revela isso. Aquele período teatral, porém, fora necessário. Fora útil. Ter mergulhado com todas as forças naquele ambiente favoreceu o desabrochar das suas múltiplas capacidades então em estado de potência.

A convivência, e por que não dizer, a amizade que travei com Wilhelm, essa simpática personagem, a sua companhia por alguns meses – li o romance com bastante vagar, como é meu hábito e defeito –,despertaram em mim algumas ideias.

No livro, o herói está em constante viagem. Não será porém a nossa vida a mais venturosa e arriscada de todas as viagens?

As personagens enigmáticas que se incumbiram da formação de Wilhelm também não existirão na vida de cada um? Seria absurdo imaginar que cada uma das pessoas com quem convivemos ou nos relacionamos, ainda que por fugidios instantes, nos deixam marcas indeléveis na alma, contribuem e participam, mesmo inconscientemente, da nossa formação?

Mais ainda: a secreta Sociedade da Torre não poderia, com razoável precisão, significar ou representar uma metáfora da comunhão dos santos, do modo como somos auxiliados, socorridos e formados pelos anjos e pelos santos, que permanecem velados, invisíveis, obscuros até o fim dos nossos dias?

Não será que no dia do Juízo, esses celestes instrutores e auxiliadores ocultos não se nos revelarão, e todos os obséquios que nos foram prestados, cada dádiva, socorro ou lição, não brilharão ao sol do meio dia, com a exata indicação de seu autor? Por exemplo: não será que alguns obséquios nos chegaram por São Paulo, outros, por Santo Antônio, outros, pela intercessão de uma avó falecida, outros, pela prece de uma alma do purgatório?

A vida toda são anos de aprendizado. Mas talvez seja possível determinar período ou períodos em que essa marca, esse signo do progresso, do amadurecimento, às vezes espinhoso, se revele de uma forma mais evidente. Talvez haja um período de formação e, depois, uma fase do trabalho, da execução da obra, da elaboração artística pelo artífice já constituído. Sim, da elaboração artística, porque viver é uma delicadíssima arte.

Sou da opinião de que a nossa vida, com tudo o que a circunda, com todos os acontecimentos e vicissitudes que comporta, é a matéria-prima nas mãos do artífice. Nós somos o artífice; a nossa liberdade é o cinzel. Pelas nossas escolhas, moldamos, damos forma ao itinerário da nossa existência. Esse elevado tipo de arte todos podem realizar. Todos podemos elaborar uma obra-prima: a obra-prima das nossas vidas. Uma vida bem vivida é um quadro belissimamente pintado, um filme magistralmente produzido, uma sinfonia magnificamente executada. Não faltam cores. Não sobram cenas. Não há tons e acordes desperdiçados. Tudo se aproveita. Não há atos isolados. Há uma excepcional coerência entre o todo e as partes, e digo por quê: porque não estamos soltos no mundo; temos mestres escondidos.

Recordando uma belíssima figura utilizada por Gustavo Corção em “O desconcerto do mundo”, no fim dos tempos, no dia do Juízo, haverá um magnífico Ofertório. E nesse Ofertório entregaremos ao Pai a obra-prima das nossas vidas.



Paul Medeiros Krause


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