quinta-feira, 13 de junho de 2013

Carta a um leitor ateu





                        A meu ver, uma das provas de que Deus existe é a profissão de médico-legista. Não encontro explicação racional para o fato de alguém se sentir atraído por tal ofício, isto é, para ter um gosto tão oposto ao meu. Poderia citar outras profissões ou atividades. Esse é apenas um exemplo. Certamente, para outros, a existência dos advogados somente pode ter explicação divina, tal é a repulsa que sentem pelo ofício de lidar com as leis.

                        Como explicar a existência dos goleiros, uma vez que os atacantes têm muito maior visibilidade? Como entender os bateristas, se vocalistas e guitarristas possuem maior evidência? Há maior recompensa material ou moral para certas funções, o que me leva a crer nos talentos inatos harmonicamente distribuídos. No mundo parece haver uma certa ordem, de modo que, se não houvessem as distorções do mercado e as pressões dos pais, tudo leva a crer, haveria grande equilíbrio e adequada distribuição de profissões e atividades. Com um detalhe: ninguém é médico para tratar as próprias doenças, dentista para cuidar das próprias cáries, lixeiro para levar o próprio lixo. Cada um de nós existe para os outros. E, creio, cada um dos outros existe também para nós.

                        Estou plenamente convencido de que se todos os homens fossem sinceros consigo mesmos, seguindo sua real vocação, suas verdadeiras aptidões, poder-se-ia verificar que a natureza sempre produziu harmoniosa correspondência entre dons e necessidades. O problema é que há desvios de rota. Quantos indivíduos, por exemplo, não tiveram de renunciar aos próprios destinos, às próprias escolhas, para realizar loucos desejos dos pais? Sim, loucos desejos, pois os genitores não são proprietários dos talentos e vocações dos filhos. Não são donos do sentido da existência dos filhos. Não lhes possuem os destinos. A ninguém é dado curar suas frustrações impondo frustrações aos outros, suicidando o sentido da existência dos outros. E é também por isso que o aborto se reveste de especial gravidade: o aniquilamento do sentido da existência do nascituro.

                        Há quem diga que a vida não tem sentido. Isso não é verdade. Até a morte tem sentido. O que existe em superabundância são os cegos, cegos para o sentido. Detectar a razão da existência exige uma certa habilidade, um certo treino. O mesmo se dá com a existência de Deus. Há quem diga que Deus não existe. Mas as provas da existência de Deus são a todo o momento esfregadas na nossa cara. O que há saindo pelos ladrões são os cegos que não sabem ler braile.

                        Diz-se que os cegos, por lhes faltar a visão, desenvolvem mais os outros sentidos. Com o homem moderno dá-se algo inverso. Por embrenhar-se demais nos toques, nos esbarros com a matéria, por afligir-se com o presente do dia dos namorados, com a perda do emprego, com o carro do ano, sofre terrível e angustiante atrofia de uma capacidade interior, da sua sensibilidade para o invisível e intangível, para o que está além do toque, além do tato e da vista.

                        De uma certa maneira, pode-se dizer que, para encontrar o sentido da vida ou mesmo as provas da existência de Deus, é preciso aprender a ler em braile. Trata-se de um outro tipo de leitura, de uma outra espécie de sensibilidade, de uma percepção de diversa natureza. O modo pelo qual estamos acostumados a conhecer, sobretudo nesses tempos encharcados de materialismo, é impróprio, é insuficiente, é inadequado para nos levar à apreensão de realidades metafísicas. Não por acaso há quem diga que a metafísica morreu. Mas não se aprende o que é amor pelo dicionário. Há uma espécie de sentido interno que nos mostra o que é o elo que une os amantes.

Às vezes, é o sofrimento quem inicia o processo de alfabetização. Viktor Emil Frankl, um grande homem do nosso tempo, provou o campo de concentração nazista e comprovou que há sentido na vida até mesmo ali. E mais: há um sentido específico para cada momento, para cada ato, para cada segundo e instante, e não apenas um sentido geral e abstrato para tudo. Intuiu ele que esse sentido está ligado a dois fatores: liberdade e responsabilidade. Sim, porque somos livres para tomar decisões sem sentido. Somos livres. Mas também somos responsáveis. Decisões sem sentido têm consequências, às vezes, catastróficas. Geram vazio existencial e toda uma série de frustrações. Mas é possível dar sentido mesmo aos erros e retificar a rota.

                        Dostoiévski esteve também à beira da morte, diante do pelotão de fuzilamento, condenado por traição. Conta-se que ele já tinha dividido mentalmente os poucos minutos que lhe restavam, para despedir-se dos companheiros. Tantos segundos para despedir-se deste, tantos segundos para despedir-se daquele. E, no entanto, no derradeiro instante, já no lugar da execução, a pena capital que lhe seria imposta foi comutada em quatro anos de trabalhos forçados. Em um de seus livros, Viktor Frankl cita uma frase do autor russo: “de uma só coisa eu tenho medo: não ser digno dos meus tormentos”. Sim, o autor de “Memórias do subsolo” enxergou um sentido a realizar diante dos seus tormentos.

                        O caro leitor deve saber que Beethoven quase nos privou de algumas de suas obras. Percebendo a surdez avançando e após desilusões amorosas, resolveu dar cabo da própria vida. Mas, misteriosamente – talvez tenha pedido auxílio aos céus, aos anjos e aos santos –, acabou vencendo o desespero e ofereceu à humanidade um exemplo quase sobre-humano de superação: compôs aquele glorioso edifício, a sua última e mais majestosa sinfonia, encontrando-se já completamente surdo. Ao invés de se deixar subjugar pela adversidade, ele resolveu “agarrar o destino pela garganta”, segundo suas próprias palavras.

                        Gostaria que o meu texto de hoje pudesse ser considerado como uma carta, uma missiva com endereço certo, uma mensagem a um leitor ateu. Gostaria de alertá-lo da sua cegueira e da necessidade de aprender a ler braile. Certos desenvolvimentos dão-se à custa de atrofias. Há uma espécie de visão interior que lê além do visível, que toca além do tato. De fato, é um tipo de visão, mais verdadeira e muito mais potente. Mas diz respeito a um outro alfabeto e a um outro tipo de idioma. Requer critérios outros, diversa habilidade, outro tipo de instrumentos. E já é um bom começo saber que essa capacidade existe.
 
Paul Medeiros Krause
Procurador do Banco Central em Belo Horizonte

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