domingo, 26 de fevereiro de 2012

Vocação e Saúde

O tema da Campanha da Fraternidade deste ano de 2012, “Fraternidade e Saúde Pública”, dentro do qual a questão da vocação se insere muito bem.

A vocação, nunca é demais insistir, não é para a própria pessoa, mas uma qualificação natural para “dar-se ao outro”. Ninguém pode dar o que não tem, razão porque o homem poderá oferecer de si aquilo que tenha a ver com sua vocação, porque vocação todo mundo tem, uma vez que ela é dom de Deus.

Deus dá a cada pessoa uma vocação personalizada e intransferível. Para tanto, providenciou os fatores que a compõe, como a hereditariedade, a vontade livre, a razão, a afetividade e, também, as necessidades e dificuldades que acompanham o existir de cada pessoa neste “vale de lágrimas”. Para tornar este vale de lágrima mais suportável, é muito adequado ajudar o próximo a carregar o seu fardo, para que o próximo possa também nos ajudar a carregar o nosso. É no intercambiar das positividades que a vocação de cada um permite que se realiza este companheirismo, tão necessário à vida e tão útil para que a saúde se amplie até a dimensão da vida social e profissional e não fique restrita somente ao domínio médico. Para tanto, a obediência à própria vocação é de suma importância.

Não precisa dizer que vivemos no mundo, que a Igreja, na oração à Mãe de Deus, qualifica como vale de lágrimas. Ele é, caso deixado por si só, hostil a que vivamos bem e na paz de Cristo, a que realmente interessa. Hoje em dia, graças ao enorme avanço dos conhecimentos na área da engenharia social – avanço técnico e não moral – as pessoas são sobrecarregadas de tal maneira com tantas e diversas coisas em que acreditam propiciar verdadeira alegria, que ao darem por si se vêem cansadas, vazias e ao mesmo tempo, tendo a impressão de que atenderam corretamente ao que sua vocação solicita. Acabamos de viver um momento assim, em que os governos dos diversos Estados do Brasil gastaram somas enormes para propiciar ao povo um enorme simulacro de conduta vocacionada – o Carnaval.

Na composição da vocação está presente o elemento afetivo, que faz a pessoa sentir como fonte de prazer o enfrentamento de dificuldades, cada uma conforme a vocação da pessoa. Se para mim é um horror sequer imaginar um corpo deformado, quanto mais vê-lo, para os de vocação compatível com o exercício da Medicina e as formações a ela associadas, esta mesma visão é entusiasmadora, provoca uma atividade benfazeja da imaginação. A pessoa assim vocacionada, olha para corpo deformado e não se detém na morbidez da situação presente, mas enxerga o mesmo corpo no futuro. O médico é como que um arquiteto do corpo humano. Assim como o arquiteto vê uma cidade inteira, prontinha, onde vemos somente matagal, o médico vê um corpo saudável ali onde o vemos somente deformado. Ele, como o arquiteto, conseguem enxergar aqui e agora os efeitos futuros da aplicação da tecnologia que têm à disposição para exercerem os seus ofícios. Esta noção está contida no que Jesus explicou (Mat. 6, 22) “O olho é a luz do corpo. Se teu olho é são, todo o teu corpo será iluminado.” A vocação é o olho com que bem olhamos para as coisas. Daí a licitude de o vocacionado à medicina antecipar experiência prazerosa olhando para aquilo que, nos não vocacionados, provoca tristeza e depressão. E esta mesma razão vale para todos.

Pois bem, pelo fato de haver conexão entre sadio prazer e atividade vocacionada, as sociedades modernas desenvolveram uma reengenharia dos costumes com força enorme para convencer que se a pessoa gosta do que faz, então sua conduta justifica a si mesma. Daí o deleite que enorme quantidade de pessoas experimenta no Carnaval, pois lhes parece que cumpriram um dever sagrado.

Para os da Igreja – e aí me refiro aos bispos e padres – o meio de ajudar no bom e reto atendimento à vocação é através da boa catequese, do ensinamento do que a Igreja ensina, não somente às crianças, mas principalmente aos adultos. Porque de que adianta somente ensinar às crianças o que a Igreja ensina, se na própria casa elas não virem exemplos saudáveis deste bom ensinamento? O exemplo é mais forte do que as palavras, e as crianças aprendem efetivamente com exemplos. Os adultos, portanto, devem lhes dar o exemplo, praticando o que uma boa catequese ensina a praticar e, na vida secular, sabendo pôr em destaque as positividades do trabalho que lhes permite cuidar da família. Para encontrar tais positividades, é mais fácil fazê-lo no que for vocacionado.

A atividade vocacionada, coincida ela com o emprego ou não, permite que os adultos manifestem para as crianças um certo contentamento associado ao trabalho. Quanto menos vocacionada a atividade, mais o adulto chega em casa chateado, com pouca paciência e pouco entusiasmo para dar a devida atenção ao cônjuge e aos filhos.

Vale chamar a atenção para este aspecto da vocação, associado à vida profissional dos adultos, pois a vida pode ser menos onerosa (em todos os sentidos) para as famílias caso se dê atenção a esta questão. Porque no No Brasil, infelizmente, desenvolveu-se uma pedagogia que na verdade faz com que, inadvertidamente, os adultos convençam as crianças que se é trabalho não há que haver alegria.


Creio ter visto o modelo desta antipedagogia na época em qu, para manter-me fisicamente presente na vida do filho, arranjei trabalho no meio esportivo. Trabalhei por alguns anos numa Associação Atlética que disponibilizava aos associados 22 modalidades esportivas, que iam desde aquelas praticáveis somente por crianças até outras, para adultos (pós-enfartados, com idade bem avançada, etc.). Nesta instituição havia uma creche, de modo que grande número dos atletas amadores eram filhos de funcionários da empresa mantenedora desta Associação. Ali a criança escolhia livremente dedicar-se a esta ou àquela modalidade. Começava cedo e praticamente sua infância e grande parte da adolescência passava lá, fazendo amigos capazes de entender suas preocupações porque compartilhavam alegrias e sofrimentos comuns – alegria da vitória, sofrimento da derrota ou de alguma lesão física, que obrigava a assistir aos treinos sem deles poder participar.

Pois bem, ao atingirem os dezesseis, dezessete anos, grande número desses atletas amadores eram retirados (ou fortemente desestimulados pelos pais) da prática que até então dominou suas vidas. Chegara a hora de irem atrás de algo “sério”, de algo que realmente “desse camisa”. E lá ia o jovem trabalhar como estagiário em instituições diversas, bancos e outras, as quais não guardavam a mais mínima relação com o que até então fez parte de suas vidas.

Esta atitude dos pais era, a meu ver, um exemplo, com força pedagógica (ou antipedagógica), de um “saber espontâneo e consensual”: “se o que a pessoa faz lhe dá prazer, a ponto de fazer com amor capaz de levar até ao sacrifício, então não é trabalho, mas lazer. Porque do verdadeiro trabalho ninguém em sã consciência pode ou deve gostar.” Em seguimento desta convicção, ao mesmo tempo habitual e inconsciente no adulto, nada mais lógico que chegar do trabalho com a cara mal arrumada, de péssimo humor, cansado a ponto de ser-lhe difícil ter paciência com o cônjuge e com os filhos... Isto porque muitos (parecia-me ser a maioria) desses adultos também viveram os primeiros dezesseis ou dezessete anos vida de livre escolha, associando atividade física, envolvimento psicológico, etc., com aquilo que ou lhes era realmente vocacional ou tinha a ver com suas vocações. E seus pais também lhes retiraram desta condição para, então, irem atrás de coisas sérias, coisas adultas, como ganhar dinheiro num trabalho não muito agradável.

Para quebrar este círculo vicioso, vale atentar para o valor da vocação, da atividade vocacionada. Que é em vista da atividade vocacionada que se suportam com paciência e docilidade de alma as maiores dificuldades que a vida possa conter, e por anos a fio. Porque não é necessário odiar um trabalho para então encontrar outro que ame. Lembro-me de um relato sobre a vida da Beata Madre Teresa de Calcutá. Li que entre seu pedido ao Beato Papa João Paulo II e sua ida para a Índia, seu mais forte desejo, passaram-se uns vinte anos. Nesses vinte anos, ela dava aulas para crianças. Quando foi autorizada a fazer o que queria, disse que gostava e muito de dar aulas para crianças, mas que desejava, acima de tudo, cuidar de miseráveis. Então, ela deixou algo de que gostava par fazer algo de que gostava mais ainda. Mas antes deste algo mais amado, ela fez com amor e dedicação outra, que naõ preferia.

Para que as crianças e jovens não sejam enganadas por prazeres efêmeros, como os do Carnaval, convém que lhes sejam mostrados exemplos de trabalhos conjugados com amor, quer tal trabalho constitua ou não fonte de renda. Porque o mais difícil é estimular a criança ou jovem a quererem trabalhar, justamente pela falta de atrativo que o trabalho (à luz daquela antipedagogia) possui. Mas se a criança ou jovem aprendem um ofício, conforme com sua vocação, mesmo que de início tal ofício não prometa transformar-se em profissão, ele terá um referencial suficientemente claro para saber que profissão mais se aproxima disto que ama. Então, estudará ou fará tudo que for necessário para encaixar-se nela, sabendo que ela constituirá a base para ele poder pagar para dedicar-se a atividade que ama justamente porque é atividade vocacionada.

Talvez seja esta a contribuição que os discentes, leigos e de vida secular podem oferecer ao próximo, em sintonia com o que a Igreja propõe na Campanha da Fraternidade deste ano de 2012, cujo tema central é a saúde. Assim contribuiremos para que nossas crianças cresçam dentro da perspectiva de se encaixarem de maneira saudável no mundo adulto, escolhendo profissões que combinem com suas vocações e, então, consigam chegar em casa com disposição suficiente para darem amorosa atenção ao cônjuge e aos filhos.

Joel Nunes dos Santos, em 25 de fevereiro de 2012.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...