domingo, 19 de dezembro de 2010

Vocação, o chamado do homem para servir a Deus e ao próximo

Na Bíblia, o primeiro chamamento que o homem recebe de Deus é narrado na passagem em que a Adão é dado o encargo de nomear todas as criaturas.

“Tendo, pois, o Senhor Deus formado da terra todos os animais dos campos, e todas as aves dos céus, levou-os ao homem, para ver como ele os havia de chamar; e todo o nome que o homem pôs aos animais vivos, esse é o seu verdadeiro nome.” Gen. 2,11.


O episódio põe em destaque a mais fundamental característica do homem, a linguagem: o homem é uma criatura vocacionada (“chamada”) a comunicar saberes e a receber saberes, de modo que não precise ficar “reiventando a roda”. E por isso mesmo o homem é apto a desenvolver convicção sobre coisas que não experimentou pessoalmente, mas apenas as conheceu por meio da linguagem.

Não estranha que, após ter-se estabelecido a vocação do homem para dar nome às coisas, Deus resolve o que na verdade permanece uma dificuldade para a maioria das pessoas: a de possuir interlocutor adequado com quem discutir suas dificuldades e expor suas soluções de problemas. Deus deu ao primeiro homem uma interlocutora, pois sabia que

“Não é bom que o homem esteja só; vou dar-lhe uma ajuda que lhe seja adequada.”


E deu. Deu-lhe uma “companheira”, uma criatura capaz de escutá-lo e também de dizer-lhe coisas.

O que interessa destacar nessas passagens é o seguinte: o homem é pessoa – “substância individual de natureza racional” (*) – , isto é, criatura fundamentalmente vocacionada a relacionar-se com terceiros, iguais ou diferentes de si próprio; vocacionada por Deus a conhecer ao mundo, a si mesmo e ao seu Criador. Para tanto, ele tem de pôr em ação sua capacidade de comunicar-se e de receber comunicação. Tanto assim que o valor que é capaz de demonstrar para Deus reside justamente no quanto faça bom uso deste dom, fato este claramente ilustrado na “parábola dos talentos”, onde é dito que

“Um homem..., tendo de viajar, reuniu seus servos e lhes confiou seus bens. A um deu cinco talentos; a outro, dois; e a outro, um, segundo a capacidade de cada um. Depois partiu. Logo em seguida, o que recebeu cinco talentos negociou com eles; fê-los produzir, e ganhou outros cinco. Do mesmo modo, o que recebeu dois, ganhou outros dois. Mas, o que recebeu apenas um, foi cavar a terra e escondeu o dinheiro de seu senhor.” (A parábola inteira está em Mat.25, 14-30).


Observe-se que quem enterrou o único talento recebido, em troca foi “jogado nas trevas exteriores”, desta sentença ficando claro que o homem é criatura tão relacional que aquilo que o próprio indivíduo não pode fazer, outro não somente pode como também deve fazer por ele – “amai-vos uns aos outros” é a sentença que resume este amoroso dever.

A vocação do homem é bem preciosíssimo, a qual se caracteriza por tornar o homem apto a comunicar-se e a receber comunicação, deste modo tornando-o um difusor do bem.

Santo Agostinho diz que “Deus vocaciona aquele a quem chama”. Quando Deus disse que o homem teria de “ganhar o pão com o suor do próprio rosto”, antes disso o dotou da capacidade para fazê-lo. Dotou-o da capacidade para transmitir e receber saberes, capacidade esta que recebe o nome de vocação.

Urge responder quantas e quais são as vocações. Para tanto, é necessário levar em conta o que o homem é. Sendo ele uma “substância individual de natureza racional”, é capaz de pensar, agir e sentir. O seu pensamento pode dirigir-se a questões muito acima daquilo em que pode interferir. Por exemplo, se o homem contempla o céu, como fazem os astrônomos, ele não possui meios de agir sobre as estrelas e sóis que vê; só pode contemplá-la. Mais ainda, se ele pensa sobre criaturas muito acima do seu entendimento, como são os anjos; ou se pensa no mistério da criação e da regeneração do homem, etc., ele só pode pensar, refletir sobre tais coisas, mas pouco pode fazer, se é que pode fazer alguma coisa. Por outro lado, o seu pensamento pode dirigir-se a coisas que estão dentro de suas capacidade de interferência; por exemplo, quando pensa em como restituir saúde a enfermo, em como construir moradias, em como aumentar a produção de alimentos e assim por diante. No primeiro caso, diz-se que o pensamento do homem é especulativo e, no segundo, prático. O máximo do emprego da inteligência de maneira especulativa chama-se Filosofia; o máximo do emprego da inteligência na solução de questões de ordem prática chama-se Ciência.

Mas além de da especulação e da ciência, o homem é dotado para imaginar coisas e mundos diversos, quando então ele se torna criador de arte, através da qual possibilita a outros “verem” o que não viram. É também capaz de “pensar pela cabeça do outro”, de colocar-se pela perspectiva de terceiros, ao que se dá o nome de altruísmo, palavra derivada de “alter”, que significa “outro”.

Do que resulta a compreensão de que as quatro maneiras principais de o homem transmitir e receber saberes encontram expressões máximas nas atividades do espírito denominadas Filosofia, Ciência, Arte e Altruismo. Tais competências são representadas pelos verbos que dão idéia de ações que se expressam principalmente o que se passa na na mente do homem, conhecer, fazer, mostrar e compartilhar.

Em resultado desta breve reflexão, chega-se à conclusão de que são quatro as vocações naturais: 1) filosófica; 2) científica; 3) artística; 4) altruística. Além destas quatro, naturais, há também a vocação sobrenatural, assunto que será tratado na seqüencia do estudo que ora fazemos da vocação natural do homem.

As quatro vocações são ilustradas em diversas passagens bíblicas. A vocação de tipo filosófica, que faz com que o espírito do homem a ela vocacionado repouse ao encontrar resposta teórica às suas indagações pode ser ilustrada pela ação de Adão ao dar nome a toda criatura, pois é papel do filósofo dar clareza e precisão às conclusões a que o intelecto conduz. A de tipo científica pela passagem onde Deus vocaciona o homem ao trabalho, mandando-o ganhar o pão com o suor do próprio rosto: para conseguí-lo, o homem tem de fazer coisas, tem de agir de maneira prática. A de tipo artístico quando o homem pratica ações com significados além da sua ação visível, quando, por exemplo, Abel oferece como sacrifício a Deus a melhor parte do que possui, como que prefigurando a condição que Jesus estabelece para os que queiram segui-Lo: renuncie a si mesmo, tome sobre si a própria cruz e siga-O. A arte é o instrumento através do qual o homem amplifica, no imaginário do outro, o sentido de suas ações, criando “presenças” que atraem e concentram a atenção de terceiros. A vocação altruística é representada pela parábola do bom samaritano, onde o bom homem interrompe suas atividades e suspende atender aos próprios interesses e dedica-se a ajudar ao próximo, servindo-o. E esta mesma vocação altruística é afirmada na condenação daquele que enterrou o talento que recebeu: se não pode fazer por si mesmo, tenha a humildade de permitir que outro faça por ele, o qual, por sua vez, é movido pelo dever de servir ao próximo.

Na seqüencia dos artigos, cada uma das vocações irá adquirindo clareza a ponto de ser reconhecida na vida do dia-a-dia, de modo que se tornem identificáveis nas pessoas que habitam em nossa vida diária. E daí conduza o leitor a identificar a sua própria, o que lhe permitirá que tipo de trabalho ou cultura lhe convém e porque certos exemplos de santidade lhe impactam fortemente a alma, enquanto permanece relativamente indiferente a outros. E também porque algumas pessoas, querendo ajudar, só conseguem atrapalhar.

(*)Sto Tomás de Aquino, Suma Teológica, 1ª. parte, q. 29, a.1

Joel Nunes dos Santos, em 18 de dezembro de 2010

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...